domingo, 1 de janeiro de 2012

Começou

Vista Cansada

Otto Lara Resende*

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

*Otto de Oliveira Lara Resende (São João del-Rei MG 1922 - Rio de Janeiro RJ 1992). Filho do professor Antônio de Lara Resende e de Maria Julieta de Oliveira, faz os estudos primários no Instituto Padre Machado, de propriedade de seu pai. Muda-se com a família para Belo Horizonte, onde inicia, em 1938, a carreira jornalística. Ingressa no curso de direito em 1941.

Formado, transfere-se para o Rio de Janeiro e trabalha em diversos órgãos de comunicação. Estréia com a coletânea de contos O Lado Humano, de 1952, e seu único romance, O Braço Direito, é lançado em 1964. Nomeado procurador do Estado da Guanabara, em 1967, sai do Jornal do Brasil e da TV Globo e muda-se para Portugal, permanecendo no país por dois anos, como adido cultural.

De volta ao Rio de Janeiro, assume a direção do Jornal do Brasil, exercida até o ano de 1974. Passa então a trabalhar como diretor das Organizações Globo, cargo que ocupa durante dez anos. Em 1979, é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Em 1991, passa a colaborar com a Folha de S. Paulo, jornal para o qual produz mais de 600 crônicas.

Cronista, contista e jornalista, Otto formou com Fernando Sabino, Helio Pellegrino e Paulo Mendes Campos o mais célebre quarteto literário que o Brasil já conheceu. Nas palavras de Otto, os "adolescentes definitivos". Amantes ardorosos da literatura, eram também portadores de feroz sentimento antifascista. Foram amigos fraternos durante toda a vida e se gabavam de estando só em três, falar mal do quarto, o ausente... (na foto acima: Sabino, Pellegrino, Otto e PMC - foto cortesia do Instituto Moreira Salles).
"Vista Cansada" foi publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992. Ontem, ele foi reproduzido no Blog do Noblat. E hoje, foi o primeiro texto que li e resolvi publicar aqui. Para começar bem o ano de 2012.

Um comentário:

  1. Eu me recuso a ter vista cansada. A rotina para mim é um experimentar, feito um eterno rascunho, muito mais interessante que o passado a limpo, o estado definitivo das coisas. Gosto de ver e pensar que tudo pode ser mudado, fora e dentro de mim. A metamorfose dos dias comuns.

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