terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Conto de Carnaval - Número 1

A Madre D’eus é considerada o coração da ilha de São Luis. É lá que pulsam mais fortes os tambores. É lá que os acordes ritmados sobem e descem ladeiras, contando histórias de vida, misturando amor e dor.

Fazendo, como se fosse mágica, a tristeza virar alegria por três ou quatro dias inteiros. É lá que a brincadeira de carnaval é mais do que brincadeira. É a tradução da verdade vestida em uma fantasia colorida, que só se desfaz muito depois da quarta-feira de cinzas.

Todo menino que nasce na Madre D’eus traz no pulsar das veias a batida dos tambores. À primeira batida e o corpo se faz vibrar, como se estivesse todo tomado. Ficar parado é impossível. Com ele também era assim. Naquela tarde, ele subiu a Avenida Rui Barbosa, cruzando o Beco do Gavião em direção ao Largo da Saudade. O roteiro do bloco era casual. Ia até onde a força permitisse, até onde a alegria durasse. E só parava vencido pelo cansaço ou por outro bloco qualquer.

Ia junto com o "Caroçudo", bloco que ajudara a criar; junto com amigos de infância, entre os quais Bumbunga, Nildo, Coscotô, Carretel, Maju e Junior Carajás, filho de “seu” Antônio da quitanda.

Cantavam de tudo pelo caminho. De velhas marchas de carnaval, hinos que embalaram muitas gerações, até as novas e mais picantes versões que traziam muito da malícia sacana dos meninos do bairro.

Havia, porém, um canto especial. Uma espécie de identidade da Turma do Quinto a escola de samba maior da Madre D’eus. Aquela que embalou a infância de todos e que, antes disso, acolheu avós e pais em suas andanças.

Era uma batida cadenciada de samba e uma letra que emocionava pela simplicidade e riqueza. Dizia mais ou menos assim:

“Ai, ai, ai, 
Eu vou descer pra cidade,
eu vou mostrar pra essa gente,
o que é sambar de verdade.

Lá na Vila tem,
tem samba de verdade,
lá na vila tem,
tem samba de verdade,

Ai, ai, ai, ai, ai,
eu vou descendo da vila pra cidade”

E isso se repetia, repetia e repetia... Cada vez com maior emoção. Cada vez mais de verdade. Aquilo era a identidade da Madre D’eus, da Turma do Quinto, de quem nasceu por ali.

Naquele dia, ele rodou com o Bloco por muitas ladeiras e becos. Cada vez mais gente seguia o Caroçudo. Mas seu coração estava triste de saudade. O amor de um dia, agora era passado. Justo no carnaval. Justo ali, na Madre D’eus. Onde a ilha pulsava mais forte.

Entrou na Rua do Passeio, voltou pela Rua do Norte, desceu o Bairro do Lira e foi bater na Areinha. O dia já tinha ido embora quando cruzou com a quitanda de “Seu” Dico, na esquina da Rua Quatro. Estava de novo no Largo da Madre D’eus com o coração cada vez mais apertado.

A noite desfez a turma. O silêncio encobriu o som. O último toque do cavaquinho de Godão, o último gole de cerveja, a solidão e a chuva ocuparam a rua. Dispersão.  Sozinho, em frente a casa onde nascera e triste pela ausência de seu amor, ele foi tomado por um impulso e começou a correr. Correu na chuva, correu contra ela e contra a solidão. Desceu a ladeira da Belira e só parou em frente à casa dela. Era tarde. Na hora e no tempo. A cidade aquietada. O coração dele, não.

Ficou ali por uns instantes. Olhando a janela fechada. Sob a chuva. Cheio de solidão e tristeza. Foi quando teve a certeza de que no coração dela só cabia o carnaval. Passista primeira da Turma do Quinto. No coração dele ainda havia lugar pra ela.

Por um momento, uma lufada de vento trouxe um som distante, uma batida de tambor bem longe, lá de seu berço. Era a Madre D’eus que o chamava de volta. E enquanto seguia sozinho uma música lhe ocupava a mente e o coração.

Ai, ai, ai,
Eu vou descer pra cidade
Eu vou mostrar pra essa gente
Que eu sei sambar de verdade... 

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