terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Natal em Ferros


*Por Matta Machado


            Lá nos Ferros, o atarracado Fernando Doxa, espirituoso e beberrão, tornara-se nos últimos tempos sem graça, amargurado, rabugento. Havia uma exceção: com seu filho adotivo. Este ganhava manifestações de ternura e de bondade daquele velho homem tornado seu pai. Porte de adulto, infantil, dócil e bobo, Coco era para ele uma das poucas alegrias a restar-lhe na vida.

            Mesmo cansado e sem ânimo, Fernando se esforçava para obedecer à Donana. A esguia, espevitada patroa há tempo o domesticara.
            Num dos mais chuvosos dias de véspera de Natal daquele pedaço de vale do Rio Santo Antônio, Donana lhe perguntou:
            - Fernando, e as mulas, e a lenha? Vá logo!
            - Hoje? Com essa chuva? – Perguntou com coragem suficiente para se mostrar indignado.
            E ouviu:
            - Hoje, meu filho! Devia ter sido ontem, mas o senhor não prestou para isto. Vá!
            - Mas é Natal...
            - Muita gente encomendou-nos lenha há uma semana. Se essa bendita não chegar, dinheiro não vem... Tem mais: como serão assados os frangos, as leitoas, o pão de queijo dessas pessoas, justamente para a ceia?
            - Com a lenha que eu tenho que ir, debaixo de chuva buscar. - Disse sentindo-se injustiçado.

            De capa de chuva, foi ao estábulo para arriar sua mula. Depois de juntar a tropa, tocou morro acima, às terras da família. No alto, a lenha já cortada e protegida das águas, encontrava-se à espera de transporte.
            Corre a tarde, cai a noite. O tal Fernando não retorna. Pátio da casa, lugar de descarregar bestas, vazio. Transtorno, preocupações.
            Perturbada, menos com seu marido sumido do que com os seus compromissos, com a lenha, com as mulas, Donana resolve ir à procura de notícias. Atenta a tudo, a todos pergunta:
            - Viram o avuado daquele Fernando Doxa? - Mas, nada.
           
            Já quase à hora da missa do galo, chega num fim de rua, a uma venda escura. Acerta. De fato lá estava o Fernando Doxa até então seguro de si, conversado, feliz.
            Vendas são uma espécie de botequim e empório rudimentar. Ali se encontram animais amarrados à porta. Onde os ares têm cheiro de urina, de fumaça de cigarro de palha, de banana madura dependurada, de bacalhau, de rapadura, de fritura de toucinho, de nota velha, de sujeira antiga, da boa pinga e de gente de todas as classes.

            Naquela noite o lugar estava cheio. Donana olha em volta com óculos que lhe emprestavam ares ameaçadores. Coloca as mãos nas cadeiras, balança a cabeça e diz:
            - Sim senhor! Sim senhor! Cachaceiro irresponsável! E logo com o nosso trato de lenha, bem ou mal nosso ganha-pão. - Reza ao Fernando Doxa um sermão dos diabos. Por tabela, aos seus companheiros. Lamenta a má sorte de suas valiosas mulas, ainda carregadas e sem banho de beira de rio. Reclama da desatenção e do pouco caso daquele sujeito. De suas péssimas qualidades como peão de tropa. Fala gritado, para magoar. Tem a pura intenção de escandalizar, de propagandear a todos, da venda e à vizinhança, as más qualidades que enxerga no Fenando Doxa:
            - Não vale nada. É ruim como tropeiro e pior como marido. - E fala, fala igual a tantas outras, aquelas sempre ciosas de suas razões, de seus interesses...

            Ele ouve calado. Abaixa a cabeça.       Os amigos da venda, respeitosos, se encostam à espera prudente de que aquilo termine. Silenciam-se também.
            Fernando Doxa, embrulhado em seu encardido e úmido paletó, debaixo do envelhecido chapéu de brim, levanta o rosto baço e enrugado. Lança de seus olhos verdes e sem brilho, um olhar triste de poeta bêbado. O olhar dos irresponsáveis, dos indiferentes, dos cansados da vida que levam... Ergue o dedo como que à procura de algo que se quer entender ou localizar. Com esforço para vencer o seu caráter cordato e submisso, com fala arrastada e marcante que denotava não somente embriaguez, mas antipatia, certa coragem e, surpresa nenhuma, diz:

         - Essa voz não me é estranha...
           
            Apenas isto. Modo improvisado que saiu de acordo para enfrentar aquela Dona Onça. Foi engraçado. Risos tímidos, espontâneos. Sorriram os dignos, os remediados, os pobres e os oprimidos. Respirou-se. O ambiente se descontraiu. Alguém se lembra, levanta o copo cheio de pinga, ergue a voz e:
            - Feliz Natal! - Outros respondem:
            - Viva!
            - E viva o Fernando Doxa!
            Cuias, canequinhas e copos tocaram-se no ar. Pinga espirrou.
             
            Fernando Doxa, em homenagem à momentânea sensação de prestígio, de independência, de alegria, toma agora o melhor gole do ano.
           
            O torresminho que mastiga é um tira gosto divino.

            E a noite é feliz.

*Matta Machado é mineiro (como só havia de ser), é um grande contador de causos, um escrivinhador de mão cheia e, nas horas vagas, cuida dos meus olhos e dos olhos de um eito de gentes. Atende pelo ofício de Oftalmologista. Acho que, de tanto olhar no fundo dos olhos dos outros, os seus guardam um brilho cheio de poesia e memória. 



2 comentários:

  1. Que delícia de "causo". Excelente para um dia ensolarado de Natal.

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  2. Viegas,

    Com trabalho e critério tua edição só fez enriquecer este texto.
    Além: teces os maiores e mais carinhoso elogios ao autor.
    Mesmo sem merecer, hei de ser-te muito grato.

    matta machado

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