domingo, 8 de setembro de 2013

Um crime imaginário


Por Cláudia Girelli *


Era uma vez (porque todas as histórias começam assim, ou deveriam começar). Então, era uma vez uma mulher que admirava os pássaros, o céu e a natureza de forma geral. Amava seus filhos e seu companheiro. Cuidava carinhosamente de todos que a cercavam e das suas plantas delicadas e rigorosamente organizadas na varanda. Morava numa cidade pacata com um coreto na praça central. Era mulher de hábitos comuns, aliás tudo era muito normal, e era justamente isso que não a deixava ser feliz.

Havia uma canção que ouvira há anos que pregava que a felicidade não passava de pequenos trechos, que ela passava todos os dias invariavelmente desatenta. Na verdade ela queria mais! Mais do que flores no jardim e céu de chuva de primavera. Queria emoção com sabor a pimenta bodinha, explosiva e esfuziante.

O homem, seu companheiro e amigo, sabia desta sua faceta escondida e, nas noites de céu estrelado, costumava levá-la para passear e a punha a falar de suas mirabolantes ideias de aventura. Uma destas noites de passeio, a mulher falou de algo que assustou o homem e o deixou mesmo apreensivo. Falou de um crime. Um sequestro. Um plano arrojado que iria transformar não só a vida deles mas também de toda a cidade.

Na cabeça da mulher estava tudo muito claro. Ela já havia observado muito bem a rotina do Sr. Padre. Sabia quando ele dormia e acordava. Sabia também das suas saídas noturnas para a observação das corujas no pasto do Sr. Amado. Sabia que não tinha muitos cuidados com a imagem do Nosso Senhor Morto. Imagina!!!! A mulher queria roubar a imagem de Jesus Cristo Morto!!!!E para quê? Como???

Aquele homem ficou atordoado com os planos da mulher. Num sábado sem luar fariam suas crianças dormir e esperariam pela madrugada quando a cidade estivesse completamente adormecida e silenciosa. Com trajes pretos, assim como os ninas  eles entrariam pela porta da sacristia e iriam dar de cara com o Nosso Senhor. O colocariam numa maca feita de pano e o levariam para a casa mortuária. Colocariam a estátua dentro da camara fria, numa daquelas gavetas. Quem é que se lembraria de procurar algo ali?

Os dois voltariam para a sua casa sorrateiramente e dormiriam como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte fariam aquilo que sempre fazem aos domingos: Acordariam cedo, arranjar-se-iam muito bem e com as crianças pela mão iriam de braços dados até a missa das 8H.

Imagina só o burburinho! As beatas a chorar, o Sr. Padre completamente descabelado, os homens a consolar suas esposas e as crianças desorientadas a correr! Ia ser a prova de como as pessoas são ligadas a coisas estranhas. A simples ausência de uma estatua realista, tosca e de gesso, em tamanho natural causaria um desequilibrio quase visceral naquela gente simples.

O objetivo dela era no fundo arrojado. Porque idolatrar aquela figura triste e sem vida? Será que o que ouviam dos ensinamentos de Cristo não tinham sido apreendido? Na verdade ficaria claro que as pessoas precisam de formato físicos para a explicação e compreensão do mundo espiritual. Realmente não seria uma tarefa fácil.

O homem deu um sorriso, como se consentisse com o plano. Pensou que aquela ideia até lhe parecia divertida. Ver a cidade a viver um momento de angústia coletiva por um motivo tão tolo ia o fazer quebrar a sua rotina também.

A mulher afastou-se por um instante. Olhou-lhe nos olhos e já em pé falou:
- Mas será possível? Como podes tu concordar com tamanha insanidade?

Moral da História: Vá lá entender as mulheres.


* Cláudia Girelli é uma amiga de longa data, conhecida em terras pantaneiras. Trabalhamos juntos em produções de TV e em outras lides de comunicação. Nossos filhos cresceram juntos até certa medida. Nos anos 90, Claudinha mudou-separa Lisboa e por lá viveu mais de dez anos. Dai vem o sotaque que se manifesta até na forma de escrever.  De volta à Terra Brasilis, ela me manda esse texto de estreia no blog, com o seu olhar luso-feminino sobre o cotidiano imaginário. Seja-bem vinda, Claudinha. 

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