terça-feira, 18 de março de 2014

O beijo imortal

O beijo - Auguste Rodin
Um calor estranho invadia o ar naquele dia. Um lusco fusco no céu. Olho para os lados e enxergo a angústia de uma guerra infinda traduzida no olhar das pessoas. Penso comigo: Guerras não nos deixam em paz. Embarco no metrô, de volta pra casa depois de uma jornada de trabalho. Entre aqui e lá há um longo caminho.

Poucos sorrisos nos rostos. Pouca bagagem nas costas. Um fiozinho de dor apertando o peito. Um pouco de nada pra contar. Apenas uma espera. Marinheiro, espero não ter que embarcar. Meu mar é outro. Minha rota não inclui batalhas sangrentas, nem bombas, nem inimigos.

No fundo, no fundo, não vejo sentido algum na guerra. Sou da paz. Não declarei guerra a ninguém, declaro o amor sempre que posso. Não quero balas. Quero beijos. Um mar de bocas estalando soa bem melhor que o ra-tá-tá-tá das metralhadoras.

Pela janela enxergo um filme rápido passando. Roupa, remédio, cigarro, modelos, a confiança vestida de propaganda disfarça o medo que nos assalta. O trem acelera. Próxima parada: Times Square. Olho o relógio e decido descer. Não ligo para o tempo perdido. Acho a hora certa de parar. Sigo por necessidade. Sigo porque é preciso. A precisão incerta do que não sei o que vai ser amanhã.

A porta do vagão se abre ao fim do sinal sonoro. Hesito um instante. Vejo o lá fora como um imenso desconhecido.  Dou o primeiro passo. O segundo. Me misturo à multidão que sobe as escadas do metrô. Algo me faz seguir. Algo me empurra como se a coincidência do acaso fosse também um sinal dos deuses.

Ganho o nível da rua e um raio de sol me atinge o rosto. O azul e branco da minha farda fica mais azul e branco. De repente, alguém grita: "A guerra acabou, a guerra acabou!" O coração acelera na mesma proporção dos meus passos. Começo a correr de alegria. De alegria a vida se enche, as pessoas estampam no rosto fartas doses de lágrimas e sorrisos.

Incontido, corro. Em direção a tudo e a nada. A perspectiva do fim e a certeza do recomeço. De repente ela surge, toda de branco, abre os braços e vem em minha direção. Um anjo branco da paz me pedindo um abraço. A estranha mais íntima da minha vida. Faço mais do que seus olhos pedem. Tomo-a em meus braços. Esqueço o mundo à minha volta e dou-lhe um beijo. O mais vivo, e longo, e suave, e generoso. Um beijo.

Como quem vence uma guerra. Como quem renasce para a vida. Um beijo eterno. Para que o mundo não tenha dúvidas. Guerra, não. Eu quero paz!

O beijo imortal - Alfred Eisenstaedt
Ficção de Maranhão Viegas para a história real de Glenn Edward McDuffie e Edith Shain, que tiveram um beijo imortalizado pela lente do fotógrafo da Revista Life, Alfred Eisenstaedt, no dia 14 de agosto de 1945, na saída do metrô, em Time Squire, Nova York. Os dois não se conheciam. Glenn tinha 18 anos à época do beijo. Ele morreu na semana passada, aos 86 anos. Seu beijo é uma das imagens mais marcantes do Século XX.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário