domingo, 6 de abril de 2014

Memória aventureira

Família Di Quarto:
Andrea, Eliane,
Lorenzo e Sophia
De Milão, na Itália, Eliane Di Quarto me escreve:

Maranhão!
Hoje eu acordei pensando  num taxista da enorme e desvairada São Paulo de quem eu nem sei o nome. Pensei, ainda, no Mineiro Louco. Um homem de quem eu mal sei o paradeiro. Imagine se sei onde  mora! São brasileiros! Prontos a ajudar e, por isto mesmo, ficaram na nossa memória. Fazem parte das nossas histórias de aventuras.

Seguem os textos:


Julho de 2001. 

Eu tinha que passar no Consulado Italiano, em São Paulo, para retirar o meu passaporte com o visto para a Itália. Cheguei logo cedo com passagem comprada para embarcar para Milão às 19h do mesmo dia. Dia de greve de transporte coletivo na Paulicéia. Trânsito um caos é dizer pouco. Minha amiga, Rosangela Valente, me pegou no aeroporto pra me levar ao Consulado que fechava na hora do almoço. Meio expediente. Morando em São Paulo há pouco tempo e pouco prática com ruas, avenidas e endereços, não era otimista. “Ane, não sei se a gente chega lá em tempo.” Trânsito praticamente parado. 


Disparado, mesmo, só o meu coração. Já estava saindo pela boca. Como poderia embarcar sem o meu passaporte? Não poderia. Bem simples. A uma certa altura do campeonato, num semáforo vermelho, vi um taxista ao nosso lado. Desci do carro da Rosangela e disse a ela: "Te espero no Consulado. Quando você chegar, chegou." 

Entrei no táxi do homem e pedi a ele pra me levar. Só colocou a mão na cabeça com um gesto preocupado e disse que não poderia porque ele estava transportando valores para uma empresa. Se o pegassem ele perderia o trabalho. Eu expliquei que poderia me abaixar no carro e ninguém me veria. Coisa de brasileira que dá jeito pra tudo.  Implorei, expliquei a minha situação, contei a minha história. Falei que estava mudando de vida com uma passagem de só ida, porém não poderia embarcar sem o documento. Faltavam 40 minutos para que o Consulado fechasse. Vendo a minha angústia ele só me disse: “Tá bom, moça. Tá bom!!” 


Chegamos ao Consulado com as portas quase fechando. Antes de descer do carro dei 50 reais a ele. Era, na época, bem mais do que valia a corrida.  Não aceitou. Só me disse: “A senhora não me deve nada não. Vai em paz, pegue o seu documento e que Deus lhe acompanhe. Boa sorte, tá?” Peguei o meu passaporte, saí do Consulado, sem olhar pra trás, sentei no meio-fio e esperei a Rosangela.  Nem perguntei o nome do taxista mas me lembro muito bem da carinha magra dele. Se o encontrasse pelas ruas de São Paulo talvez pudesse reconhecê-lo.

Outubro de 2006. 


Estávamos no Pantanal. Saímos de Corumbá e queríamos rumar para a Pousada do Lontra. Um pit stop para o almoço antes de continuar para Campo Grande. Eu, Andrea, meu marido, minha mãe e o Lorenzo; na época com apenas 2 anos. Viajávamos em um carro pequeno, baixo, e lá para os lados do Passo do Lontra havia chovido muito. Próprio tanto! 

De repente, nos vimos atolados com barro que chegava para cima das canelas. Andrea, europeu, habituado  a dirigir em “autostrada” sem nunca ter atolado na vida dele, segurou a onda pra não demonstrar o nervoso, não verbalizou mas vi o pânico nos olhos dele. Olhamos para o Lorenzo que já começava a reclamar de fome. Em volta não havia nada. 

Deste nada apareceu um moço, vestido para a missa de domingo. Camisa clara impecavelmente passada, jeans e botas pra lá de limpos. A fivela no cinto de couro reluzia. Ele chegou perto, coçou a cabeça e disse: se alguém souber ficar no volante eu empurro e tiro vocês daqui. Eu olhei para a roupa de domingo dele e senti  pena. “Como é que você se chama?” E ele: "Todo mundo me chama de Mineiro Louco. A senhora pode me chamar assim, também."  Pois bem... “Mineiro louco, não é o caso de você ficar no volante e eu e meu marido, que já estamos um pouco embarrados,  empurrarmos?” Sei lá por quais motivos o Mineiro não concordou com a minha idéia. Empurrou o carro, saímos do atoleiro e ele com uma roupa tooooda respingada de barro.

Não podíamos deixá-lo ali. De fato, ele precisava chegar aonde tivesse mais movimento pra encontrar uma outra carona e prosseguir para a fazenda onde trabalhava. Deixamos o Mineiro Louco em um bar/restaurante na entrada do Passo do Lontra. Recomendamos ao senhor que desse o almoço a ele e tudo o mais que ele precisasse. Na volta passaríamos e pagaríamos a conta dele.  




Fomos à Pousada do Lontra. Nos divertimos, Lorenzo viu jacarés, tiramos fotos e voltando pra Campo Grande paramos para pagar a conta do Mineiro. Quando o caixa nos apresentou a conta nós pensamos que houvesse algum erro. “Não é possível! Quanto custa um almoço aqui?” E o caixa: “Mas o moço não almoçou não, dona. Ele trocou tudo por uma garrafa de cachaça. Não quis comer de jeito nenhum!” Pagamos a conta do Mineiro e ainda hoje lembramos dele. Da sua bondade, da sua solidariedade! Coisa de brasileiro pra deixar europeu de boca aberta

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